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Capoeira e identidade: o ritual do batizado

Capoeira and identity: the ritual of baptism

Capoeira e identidad: el ritual del bautismo

 

*Mestranda em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa

**Doutoranda em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa

***Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná e Professor

do Programa Strictu Senso de Ciências Sociais Aplicadas

da Universidade Estadual de Ponta Grossa

(Brasil)

Karen Vanessa Matozo Quimelli*

karenmatozo@hotmail.com

Ana Flávia Braun Vieira**

ana.braun@yahoo.com.br

Miguel Archanjo de Freitas Junior***

mfreitasjr@uepg.br

 

 

 

 

Resumo

          O presente trabalho pretende compreender a relação entre capoeira e identidade, a partir da observação participante realizada no ritual de batismo, intitulado “1º Berimbau tocou, eu vou jogar”, organizado pelo Grupo Muzenza Ponta Grossa- Paraná. Com base na observação emergiram três categorias que foram problematizadas: a roda, os apelidos e a graduação. Estas categorias, permitiram um maior aprofundamento reflexivo sobre a “invenção de tradições” como elemento central para a coesão interna e a organização identitária do grupo. Com as análises foi possível compreender que a importância conotada ao batismo trata-se de uma celebração de pertencimento, ao mesmo tempo em que serve como manutensor da identidade coletiva Muzenza.

          Unitermos: Batizado de capoeira. Identidade. Coesão grupal.

 

Abstract

          This paper aims to understand the relationship between capoeira and identity, from participant observation conducted in the baptism ritual, entitled "1st Berimbau played, I'll play," organized by Muzenza Group Ponta Grossa - Paraná. Based on observation three categories emerged and were problematized: the roda, the nicknames and the graduation. These categories allowed a deep reflection about "invention of tradition" as a central element for the internal cohesion and identity organization of the group. Analysis provided an understanding to the importance of the baptism as a celebration of belonging, while serving as maintainer of Muzenza’s collective identity.

          Keywords: Capoeira baptism. Identity. Group cohesion.

 

Resumen

          El presente trabajo pretende comprender la relación entre capoeira e identidad, a partir de la observación participante realizada en el ritual de bautismo, titulado "1º Berimbau tocó, voy a jugar", organizado por el Grupo Muzenza en Ponta Grossa, Paraná. A partir de la observación surgieron tres categorías que fueron problematizadas: la roda, los apodos y la graduación. Estas categorías permitieron una mayor profundización reflexiva sobre la "invención de tradiciones" como elemento central para la cohesión interna y la organización identitaria del grupo. Con estos análisis fue posible comprender que la importancia que tiene el bautismo que se trata de una celebración de pertenencia, al mismo tiempo que sirve como soporte de la identidad colectiva Muzenza.

          Unitermos: Bautismo de capoeira. Identidad. Cohesión grupal.

 

Recepção: 06/09/2016 - Aceitação: 13/05/2017

 

1ª Revisão: 25/04/2017 - 2ª Revisão: 10/05/2017

 

 
Lecturas: Educación Física y Deportes, Revista Digital. Buenos Aires - Año 22 - Nº 228 - Mayo de 2017. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    Repleta de expressões, gestos corporais e marcada pela malícia dos jogadores, a capoeira é uma manifestação cultural que mistura arte, música, jogo, história e teatralidade (Vasconcelos, 2006). Historicamente esta prática valeu-se da tradição oral e do capital simbólico1 de seus mestres para transmitir informações aos seus alunos, ligando-os simbolicamente a uma memória de sofrimento e resistência que se mistura ao passado colonial do Brasil (Santos, 1990; Adorno, 1999).

    O enfoque deste trabalho inscreve-se entre a Antropologia e a História, compreendendo tal manifestação cultural a partir de uma construção processual identitária. Neste sentido, capoeira e memória estão profundamente relacionados, seja na ancoragem em práticas pretéritas ou na produção de novos sentidos.

    As considerações a seguir foram construídas a partir de pesquisas de caráter documental e bibliográfico sobre a temática, além da realização de observação participante2 no “1º Berimbau tocou, eu vou jogar”, evento de batizado de novos participantes do Grupo Muzenza Ponta Grossa3.

    A escolha pela observação do batizado para a compreensão da relação entre capoeira e identidade coletiva tem pressupostos teóricos em Pierre Nora (1993), quando o historiador trata da noção de lugares de memória. O conceito desenvolvido por Nora extrapolou o contexto francês e tem sido empregado para análises como esta.

    Segundo Nora (1993), fala-se tanto da memória porque ela não existe mais. Então, os lugares de memória são criados com um dado objetivo: “nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais” (Nora, 1993, p.13). Diante disto, a função fundamental dos lugares de memória “é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para (...) prender o máximo de sentido num mínimo de sinais” (Nora, 1993, p.22).

    Com base neste pressuposto teórico, entende-se o batizado na capoeira enquanto um lugar de memória por estar ancorado em práticas (físicas e/ou históricas) pregressas e também pela manutenção das mesmas, contribuindo para o pertencimento identitário dentro de um grupo específico de capoeira, nesse caso o Muzenza.

    Acredita-se, mesmo que de maneira hipotética, que determinadas práticas do grupo sirvam também para a estruturação do campo. Uma vez que em Ponta Grossa existem outros grupos de capoeira, o Muzenza poderia utilizar-se de determinados rituais enquanto propriedade de diferenciação em detrimento a outros campos em busca de consolidação4.

    Pertencer a um grupo tem um forte sentido para os capoeiristas, pois o sentimento de pertencimento comunitário ocasiona a solidariedade e ajuda entre seus membros, assim como proporciona segurança e cooperação em eventos e atividades de mobilização do grupo. A ideia do pertencimento social, portanto, remete ao capoeirista não somente ter vínculo durante os treinos, mas também a possibilidade de partilhar uma visão de mundo semelhante à de seus colegas de capoeira (camaradas do grupo).

    O sentido de analisar a capoeira, mais especificamente o ritual de batizado do Grupo Muzenza - Ponta Grossa (PR), é procurar compreender a relação entre esta prática e a noção de identidade coletiva, entendida neste trabalho enquanto um fenômeno construído de maneira coletiva e passível de transformações (Halbwachs, 2003). Especificamente, pretende-se entender como tem sido apropriadas e inventadas determinadas tradições afim de contribuir na coesão interna do grupo.

    Sendo assim, diante desse exposto, o trabalho tem como objetivo compreender a relação entre capoeira e identidade, a partir da observação participante realizada no ritual de batismo, intitulado “1º Berimbau tocou, eu vou jogar”, organizado pelo Grupo Muzenza Ponta Grossa - Paraná.

O Grupo Muzenza de Capoeira

    Atualmente, o ato de jogar capoeira é bastante comum, nos mais diversos ambientes: academias, teatros, ginásios e em lugares abertos, configurando as rodas de rua. Entretanto, por um longo período esta prática foi considerada ilegal no Brasil, especialmente por suas origens históricas (Pires, 1996).

    De acordo com Cortez et al. (2008), a capoeira passou a ser praticada em território brasileiro como uma forma de resistência encontrada pelas diferentes etnias africanas escravizadas no Brasil para a manutenção de sua cultura de origem. A prática passou a ser estritamente proibida após a abolição da escravidão: em 1890 a capoeira foi incluída no Código Penal da República como uma atividade ilegal. Para Adorno (1999), esta proibição foi socialmente aceita por parcela da população, uma vez que a capoeiragem era considerada como vadiagem e, portanto, deveria ser coibida com punições.

    A repressão à capoeira se atenuou somente quando de sua utilização com finalidades específicas: durante a ditadura do presidente Getúlio Vargas (1937-1945), o “Estado Novo” intentou organizar uma identidade nacional. Diante disto, práticas como o futebol e a capoeira passaram a ser incentivadas visando a união nacional. De acordo com as considerações de Adorno (1999), Santos (2004) e Vassallo (2008), entende-se que a liberação da capoeiragem representaria a manifestação da mestiçagem brasileira, ideia conivente com os princípios ideológicos vigentes.

    A partir de 1937, com a regulamentação da prática, surgiram duas principais vertentes, das quais derivam os mais diversos grupos. O Muzenza mantém até os dias atuais um misto de ambas: a Capoeira Angola, que tem como representante o Mestre Pastinha5 e se configura enquanto um jogo mais rasteiro e lento, com elementos surpresa e teatralidade; e a Capoeira Regional, criada por Mestre Bimba6, caracterizada por sua fragmentação em exercícios fundamentais a serem desenvolvidos de forma sequencial e consiste de um jogo mais alto e rápido.

    As duas vertentes possuem mestres representantes. Para o Grupo Muzenza7, um de seus objetivos é justamente o resgate à valorização desses Mestres velhos de capoeira, como representantes autênticos desta manifestação cultural brasileira. Suas bases filosóficas estão pautadas no respeito, disciplina, socialização e na liberdade de expressão como cidadão na sociedade.

    Fundamentado nos princípios de seu grupo de origem, o Muzenza Ponta Grossa foi fundado em 05 de maio de 1972 e tem como objetivo a divulgação e a promoção da capoeira como um esporte genuinamente brasileiro, entendendo-o como luta, arte, ritmo, poesia, cultura, desporto, profissão e filosofia de vida8. Além de aspectos físicos da prática, a metodologia adotada nesta vertente contempla a história da capoeira e suas raízes, preservando e a valorizando os ensinamentos.

    Em Ponta Grossa o Muzenza tem como responsável Mestre Polaco, que enfatizou em suas falas, durante a observação participante, a necessidade do capoeirista conhecer sua linhagem, sua árvore genealógica dentro da capoeira, estabelecendo vínculos identitários coletivos. Além do exercício da capoeira em si, são também ensinados rituais, tradições e histórias ancestrais. Este aspecto, que extrapola a prática de um exercício físico, chama a atenção no que diz respeito a questões identitárias. De acordo com Pollak (1989) existe uma forte ligação entre memória e identidade, uma vez que esta fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento.

    Por um longo período a memória e a história dos praticantes de capoeira foram consideradas subterrâneas, sufocadas por memórias outras impostas de acordo com interesses determinados. O resgate destas é legítimo à História, mas também passível de análise, uma vez que referências pretéritas contribuem à formação identitária, ao mesmo tempo em que mantém a coesão interna (Pollak, 1989).

    Como não existe nenhum material sistematizado pelo Grupo Muzenza para o ensino das histórias relativas ao percurso da capoeira até os dias atuais, as narrativas ensinadas pelos mestres aos alunos são oriundas da tradição oral. Neste sentido, é importante ressaltar que a valorização dos mestres de capoeira conota aos mesmos maior capital simbólico, ao mesmo tempo em que lhes autoriza o discurso, uma vez que “os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir” (Chauí, 1989, p.07), tendo o direito de (re) contar esta memória.

    Se a memória pode ser considerada essencialmente seletiva, permanecendo aquilo que significa, ao longo do desenvolvimento do Grupo Muzenza foram sendo deixadas como herança saberes e histórias que tiveram maior relevo e que serviriam para legitimação da capoeira. Dessa maneira, enquanto manifestação cultural, a capoeira vem sendo ancorada em determinadas práticas, narrativas e/ou físicas, que a inscrevem enquanto tal: a roda, a adoção de apelidos e o uso de cordas amarradas à cintura. Assim, partir da observação participante, tais práticas serão analisadas em sua interseção com a noção de identidade.

O batizado Muzenza

    A preparação para o batizado se deu em dois encontros que precederam ao “1º Berimbau tocou, eu vou jogar”, realizado no dia 21 de novembro de 2015. São eles:roda de capoeira realizada no dia 20, à noite, na academia do Mestre Polaco, e roda de rua realizada no dia 21, pela manhã, no Parque Ambiental9 de Ponta Grossa. Em todos os encontros, com destaque especialmente para o ritual do batizado, realizado à tarde, foi possível observar o estado de espírito dos participantes do evento, inferidos a partir de suas expressões corporais (Silva, 2003). Constatou-se que vários capoeiristas do grupo estavam felizes e eufóricos, enquanto que os mais introspectivos pareciam nervosos. Este comportamento revela a importância simbólica conotada à cerimônia: um momento de (re)afirmação de preceitos da capoeira.

    Durante o evento ficou evidente a preocupação com questões de origem, uma vez que Mestre Polaco iniciou a fala de abertura pela explicação do termo Muzenza. Segundo o responsável pelo grupo, a expressão significa “iniciado tratado com apreço, carinho e mimo”, sendo também um nome utilizado no candomblé para designar “a força de todos os deuses africanos, os orixás”.

    A utilização de referências a um passado distante, remetendo à ideia de tradição, é útil à integração e legitimação social. Para Hobsbawn e Ranger (1997), tradição pode ser entendida enquanto um conjunto de práticas que “visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado” (Hobsbawn; Ranger, 1997, p. 9). Frisar os significados do nome do grupo serviria para reafirmar determinados valores aos antigos adeptos, ao mesmo tempo que contribuiria ao sentimento de pertença dos recém-iniciados.

    Os novos praticantes, bem como os demais, recebem a nova graduação perante prova realizada pelo mestre da região. Nesta prova são avaliados quatro pontos considerados fundamentais para o contínuo desenvolvimento na prática da capoeira, são eles: avaliação sobre o conhecimento da capoeira e de seus fundamentos; conhecimento sobre a filosofia do grupo ao qual pertence e vivencia dessa filosofia dentro e fora da capoeira; evolução dos movimentos corporais (golpes, esquivas, floreios, estilos de jogo); e evolução no canto e na prática dos instrumentos da capoeira.

    Para a obtenção de nova graduação, todos os capoeiristas participaram dos três eventos observados: roda de capoeira na academia do mestre, roda de rua e o ritual do batizado. No batismo, todos passam pelo mesmo procedimento: percorrem a roda, fazem reverência ao berimbau, agacham-se dentro do círculo e são convidados a jogar com um mestre ou professor experiente, que serve como uma espécie de padrinho aos recém-iniciados, participando, assim, de sua primeira roda de capoeira enquanto pertencente do Grupo Muzenza.

A roda de capoeira

    A roda de capoeira é considerada pela Organização das Nações Unidas como Patrimônio Imaterial da Humanidade, por ser uma das manifestações culturais mais conhecidas no Brasil e reconhecidas no mundo. Para o Instituto Histórico e Artístico Nacional (IPHAN, 2014), a roda é um elemento estruturante da manifestação da capoeira, pois expressa o toque dos instrumentos, o canto, os golpes, as brincadeiras, a dança e a luta, além de símbolos e rituais. Na roda são transmitidos conhecimentos e nela ocorrem tanto o batizado dos iniciantes, quanto o surgimento de novos mestres.

    Dentro da roda ocorre o jogo entre dois capoeiristas. O ritmo e o estilo são comandados pelos instrumentos e músicas tocadas. Os demais participantes permanecem em volta tocando, batendo palmas, cantando e observando o movimento dos jogadores. Para Adorno (1999), “a música é um dos instrumentos de preservação da memória, transmitindo as tradições de diferentes épocas do passado da capoeira” (Adorno, 1999, p.65).A função da música na capoeira, para além de questões rítmicas do jogo, relaciona-se à transmissão de mensagens para os praticantes. A repetição de determinadas letras contribui para o desenvolvimento de uma memória coesa do grupo.

    De acordo com os participantes do Muzenza Ponta Grossa, há mais de vinte anos ocorrem às sextas-feiras rodas de capoeira na sede do grupo, onde é permitido treinar os movimentos aprendidos durante a semana e mostrar suas habilidades de jogo. A ênfase dos capoeiras na evidência de uma prática que se estende por tantos anos permite inferir que determinadas tradições pretéritas foram (re)apropriadas, ao mesmo tempo em que novas tem sido criadas, contribuindo a um sentimento de pertença.

    Esta “negociação” entre memórias de um passado remoto e de outro não tão distante assim fazem parte das estratégias de coesão identitária:

    O trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material fornecido pela história. Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um sem-número de referências associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro (Pollak, 1989, p.10).

O apelido

    A adoção de um apelido para a prática de capoeira vem de seus tempos de proibição, quando esta ainda era considerada vadiagem. Como era entendida enquanto marginal e criminosa, os capoeiristas dos séculos precedentes se viam obrigados a usar codinomes para não serem identificados e/ou presos pela polícia.

    O Muzenza mantém o costume da aquisição de apelidos quando do batismo, entretanto, o pseudônimo que preservara a identidade civil dos adeptos no final do século XIX não é, efetivamente, necessário desde que a capoeira se tornou lícita. Entende-se, deste modo, que a adoção de um codinome serviria para reavivar costumes pretéritos. Ao mesmo tempo, remetendo novamente à relação entre o novo e o antigo, são criadas tradições outras: há o envolvimento social na comunidade Muzenza quando da escolha do apelido ao recém-iniciado.

A graduação10

    A capoeira, especialmente em eventos formais como o batizado, requer a utilização do abadá (uniforme oficial). Os trajes costumam ser da cor branca, compostos por camisa e calça em tecidos específicos. A prática é realizada sem calçados nos pés e sempre com a corda na cintura. Esta, por sua vez, caracteriza o tempo e o aperfeiçoamento: conforme o capoeira vai se desenvolvendo, a cor de sua corda é alterada.

    Cada grupo tem seu próprio conjunto de cores para as cordas, representando o nível em que se encontra o praticante. No caso do Muzenza, até mesmo o modo de amarrá-la produz sentidos de pertença: usa-se a corda com um nó sempre feito do lado esquerdo, significando “dentro da roda”, em uma referência de respeito às tradições.

    Para a graduação, após ser chamado por seu apelido, o capoeirista segura sua nova corda dentro da roda, enquanto os mestres tocam um ritmo solene e festivo. Quando todos os participantes de determinada cor de corda estão dentro da roda, inicia-se efetivamente o cerimonial, curvando-se ao passar por seus mestres e pelo berimbau, para então jogar com a nova corda. De acordo com os mestres, trata-se de uma reverência simbólica à ancestralidade.

Discussão

    Não se sabe muito bem a procedência do ritual do batizado. Como a História não contemplava as “minorias”, esta prática não tem documentada uma origem precisa. Os relatos orais também não dão conta de explicar o surgimento desta celebração. Acredita-se, diante disso, que o batizado pode ser um evento que não integrava a estrutura inicial da capoeira. Sabe-se que diversos grupos o praticam, incorporando novos elementos às práticas realizadas no passado.

    No mesmo sentido, o sistema de graduação por cordas também é recente, sendo desenvolvido a partir da legalização da prática a partir da década de 1930. De acordo com relatos do Mestre Polaco durante a cerimônia de batizado, no início da prática da capoeira no Brasil usava-se um lenço amarrado no braço. Entretanto, Mestre Bimba, organizador da Capoeira Regional, incorporou características das artes marciais orientais, trocando a identificação da graduação para uma corda amarrada na cintura.

    Ambos os rituais, que são relativamente recentes e ancoram-se em práticas pregressas, podem ser considerados como tradições inventadas. Esta noção está pautada nos escritos de Hobsbawn e Ranger, que a definem “essencialmente [enquanto] um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição (Hobsbawn; Ranger, 1997, p.12). Assim, na invenção de tradições, mesmo que inicialmente algum elemento ou princípio não seja constituinte de um grupo ou conjunto de ideias, é possível travesti-lo de “tradição” e incluí-lo no composto, uma vez que “toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história [e a memória] como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal” (Hobsbawn; Ranger, 1997, p.21).

    Essas “tradições”, quando incorporadas enquanto elementos constitutivos da memória do grupo, acabam por fazer parte da própria história do Muzenza. Quando tais “tradições” vão sendo praticadas, cantadas e contadas por meio da socialização histórica nas rodas de capoeira, possibilitam que sejam transmitidas de geração em geração, possibilitando a coesão interna do grupo.

    A ênfase dada pelo Grupo Muzenza aos ensinamentos de preceitos históricos relativos à origem da capoeira enquanto forma de resistência, a valorização de tais ensinamentos e práticas ancestrais notadamente contribui para o que Pollak (1992) chamou de memória herdada: “acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não” (Pollak, 1992, p.02). O sentimento de pertença contribui para que esta “herança” seja passada dos mestres aos iniciados, com elevados graus de identificação.

Conclusões

    A compreensão da capoeira enquanto manifestação cultural, dotada de certos ritos, permite observar que o empenho na organização e conservação de uma memória coletiva tem finalidades identitárias. Ancoram-se em tradições pregressas, ao mesmo tempo em que são criadas novas, contribuindo para o sentimento de pertença.

    O que se observa na intersecção entre capoeira e identidade é o papel fundamental que possuem determinados rituais, como o batizado, a roda, os apelidos, a graduação e a figura de um mestre, na manutenção da coesão interna do grupo. Na medida em que os adeptos da capoeira Muzenza se ancoram em tradições – reais, reapropriadas ou inventadas – constrói-se a noção de pertencimento a um passado histórico e presente comuns, a partir de discursos e práticas sistematizados e autorizados.

    Diante do exposto, pode-se afirmar que o ritual do batizado é considerado pelos capoeiras como um evento de grande importância porque aprenderam que esta é uma forma de preservação da tradição ancestral de luta e resistência à escravidão e de preservação da cultura afro-brasileira. Ao mesmo tempo, enquanto um ritual de iniciação, o batismo é a celebração de pertencimento aos recém-iniciados e manutensor da identidade coletiva Muzenza.

Notas

  1. Neste trabalho o conceito de capital simbólico e campo foram organizados a partir das considerações de Bourdieu. Para maiores informações consultar: BOURDIEU, P. O poder simbólico. 16ªed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

  2. Neste trabalho o procedimento metodológico para a realização da observação participante tem pressupostos teóricos em Cruz Neto (1994). Esta escolha justifica-se em relação ao objetivo do trabalho, bem como a proximidade de uma das pesquisadoras com o referido grupo. Para Cruz Neto, este tipo de pesquisa “se realiza através do contato direto do pesquisador com o fenômeno observado para obter a realidade dos atores sociais em seus próprios contextos” (CRUZ NETO, 1994, p.59).

  3. Ponta Grossa é uma cidade localizada na região central do estado do Paraná, Brasil.

  4. Neste mesmo sentido, diversos grupos ao redor do mundo utilizam-se da cerimônia do batismo, como o Grupo Abadá-Capoeira de Portugal, a American Society of Capoeira & Arts from Brazil dos EUA, o Movimento Simples de Capoeira Sarawak da Malásia e o Grupo Capoeira Mandinga Shanghai da China.

  5. Vicente Joaquim Ferreira Pastinha (1889-1981)

  6. Manoel dos Reis Machado (1899-1974)

  7. Disponível em: http://muzenza.com.br/2013/. Acesso em: 31.08.2016.

  8. Idem.

  9. O principal parque do município, localizado no centro da cidade próximo de importantes pontos de comércio.

  10. No Grupo Muzenza de Capoeira a cerimônia da graduação está vinculada ao ritual do batizado.

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